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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A SUBIDA DO MONTE CARMELO

 

A SUBIDA DO MONTE CARMELO



A SUBIDA DO MONTE CARMELO

A seguir, excertos feitos a partir da tradução de obras de João da Cruz realizada pelas Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, publicada pela Editora Vozes.
Apresentação do Pe. M.T.L. Penido
A Subida do Monte Carmelo. A vida mística, à qual João da Cruz nos convida a nos dispormos, êle a concebe como união de amor com Deus. A perfeição desta vida será a «união transformante», na qual a vontade da alma se acha transformada, pelo amor, na vontade de Deus: duas vontades num só e mesmo amor. Graça muito alta e rara. Mas os primeiros graus da união de amor são mais encontradiços entre os espirituais. Embora êles também sejam dons gratuitos de Deus, podemos e devemos nos dispor a recebê-los se fôr conforme ao divino beneplácito. Deus não põe sua graça na alma senão na medida da vontade e do amor dela. Por conseguinte, desejando a alma que Deus se dê todo a ela, deve entregar-se tôda a êle. Sem dúvida, é Deus que vem a nós; todavia, devemos nos pôr a caminho, procurá-lo, remover os obstáculos.

A Subida ensina, de modo concreto, essa entrega e o caráter total que deve revestir. A obra enfeixa, pois, os princípios ascéticos de João da Cruz. Ascetismo implacável. Não admite complacência ou meia-medida. Exige a renúncia absoluta. Não por calúnia foi João da Cruz alcunhado o Doutor do Nada, e ficou célebre, entre os espirituais, esta sua frase : "Nada, nada, nada, até deixar a própria pele e o resto, por Cristo".

(...)

A preparação ascética - ou, como êle diz, a "purificação ativa" - à vida mística, João da Cruz concebe-a como exercício constante, puro, heróico até, das 3 virtudes teologais. Se queremos, com efeito, nos unir a Deus, o único meio de encontrá-lo será através da fé, da esperança e da caridade. Mais intensas essas virtudes, mais estreita a união. Donde a divisão da Subida em três livros, para ensinar nos a tríplice «purificação». Despida a inteligência, pela fé, de pensamentos que não são puramente Deus, poderá, ser elevada às coisas divinas; esvaziada a memória, pela esperança, de lembranças terrenas, poderá ser enchida de divinas notícias; desprendida a vontade de qualquer apego, pela caridade, poderá ser livremente movida pelo divino amor.

João da Cruz não aconselha apenas a depuração e pacificação das atividades naturais - sensações, imagens, lembranças, reflexões, desejos, - mas ainda de toda a atividade religiosa menos perfeita. Não se cansa de pedir a renúncia à religião gozadora: devoção sensível, apegos às graças extraordinárias (visões etc.). Só assim viverá o discípulo em pura fé, esperança e caridade. Na Subida o Santo pormenoriza, com férrea lógica, os meios práticos a empregar pela alma no seu esfôrço de desnudamento.

Modo para chegar ao Tudo
Para chegares ao que não sabes,
Hás de ir por onde não sabes.
Para chegares ao que não gozas,
Hás de ir por onde não gozas.
Para vires ao que não possuis,
Hás de ir por onde não possuis.
Para vires a ser o que não és,
Hás de ir por onde não és.

Modo de possuir tudo
Para vires a saber tudo,
Não queiras saber coisa alguma.
Para vires a gozar tudo,
Não queiras gozar coisa alguma.
Para vires a possuir tudo,
Não queiras possuir coisa alguma.
Para vires a ser tudo,
Não queiras ser coisa alguma.

Modo para não impedir o tudo
Quando reparas em alguma coisa,
Deixas de arrojar-te ao tudo.
Porque para vires de todo ao tudo,
Hás de deixar de todo ao tudo.
E quando vieres a tudo ter,
Hás de tê-lo sem nada querer.
Porque se queres ter algo em tudo,
Não tens puro em Deus teu tesouro.

Indício de que se tem tudo
Nesta desnudez acha o espírito
sua quietação e descanso,
porque, nada cobiçando, nada
o impele para cima e nada
o oprime para baixo, porque
está no centro de sua humildade;
pois quando cobiça alguma coisa
nisto mesmo se fatiga.
rata êste livro de como poderá a alma dispor-se para chegar em breve à divina união. Dá avisos e doutrina, tanto para os principiantes, como para os mais adiantados, muito proveitosa, para saberem desembaraçar-se de tudo o que é temporal e não serem prejudicados mesmo no que é espiritual, ficando em suma desnudez e liberdade de espírito, como se requer para a união divina.


ARGUMENTO

Encerra-se nas canções seguintes tôda a doutrina que desejo expor na Subida do Monte Carmelo, assim como o segrêdo de alcançar o mais alto cume desta montanha, que outra coisa não é senão o estado de perfeição - estado sublime que chamamos aqui união da alma com Deus. E como tudo que tenho a dizer se apóia sôbre estas canções, eu quis reuni-las aqui para apresentar ao leitor, em conjunto, a substância do que devo escrever. Isso, porém, não impedirá que seja depois cada uma delas repetida separadamente, assim como os versos que as compõem, segundo as exigências da matéria e a necessidade da exposição.


CANÇÕES

Em que canta a alma a ditosa ventura que teve
em passar pela noite escura da fé,
na desnudez e purificação de si mesma,
à união com o amado.

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
num segrêdo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada;
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que inteiro só para Ele se guardava,
Quedou-se adormecido...
E eu, terna, O regalava,
dos cedros o leque O refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
com sua mão serena
Em meu colo soprava,
meus sentidos todos transportava.


8. Esquecida, quedei-me,
rosto reclinando sôbre o Amado,
Cessou tudo e deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.


PRÓLOGO

1. Para explicar e fazer compreender a noite escura pela qual passa a alma antes de chegar à divina luz da perfeita união do amor de Deus, na medida do possível neste mundo, seria necessária outra maior luz de experiência e de ciência do que a minha. As ditosas almas destinadas a chegar a êste estado de perfeição devem, de ordinário, afrontar trevas tão profundas, suportar sofrimentos físicos e morais tão dolorosos, que a inteligência humana é incapaz de compreendê-los e a palavra de exprimi-los. Sòmente aquêle que por isso passa saberá senti-lo, sem todavia poder defini-lo.

2. Para dizer, portanto, alguma coisa desta noite escura, não me fiarei de experiência nem de ciência, porque uma e outra podem falhar e enganar; todavia ajudar-me-ei de ambas no que me puderem valer. Para tudo quanto com o favor divino hei de dizer, ao menos para as coisas de mais difícil compreensão apoiar-me-ei na Sagrada Escritura : tomando-a por guia, não há perigo de engano, pois nela fala o Espírito Santo. E, se em algum ponto errar, pelo fato de não entender bem o que com a mesma Escritura ou sem ela disser, declaro não ser minha intenção apartar-me da sã doutrina e sentido da Santa Madre Igreja Católica. Submeto-me e resigno-me inteiramente, não só à sua autoridade, mas à de todos os que oferecerem melhores razões que as minhas.

3. Se me decido a êste trabalho, não é por crer-me capaz de tratar de assunto tão árduo, mas confiando que o Senhor me ajudará a dizer alguma coisa, para proveito de grande número de almas muito necessitadas. Estas iniciam o caminho da virtude e, no momento em que Nosso Senhor quer introduzi-las na noite escura, visando elevá-las à união divina, detêm-se, seja pelo receio de entrar e deixar-se introduzir nessa via, seja por não se entenderem a si mesmas, ou por lhes faltar guia esclarecido e hábil que as conduza até o cume. Causa lástima ver muitas almas às quais Deus dá talento e graças para irem adiante e, - se quisessem ter ânimo, - chegariam a êsse alto estado de perfeição ; e ficam paradas, sem progredir, no seu modo de tratar com Deus, não querendo ou não sabendo, por falta de orientação, desapegar-se daqueles princípios. E mesmo se Nosso Senhor lhes concede enfim a grande mercê de se adiantarem sem os meios adequados, chegam muito mais tarde, com maior trabalho e menor merecimento, por não corresponderem a Deus nem se deixarem conduzir livremente por Êle no puro e certo caminho da união. Porque, embora Deus que as leva possa certamente prescindir destas ajudas, contudo, com a resistência que tais almas lhe opõem, caminham menos e não merecem tanto, pois não entregam a vontade ao Senhor e encontram dêste modo maiores sofrimentos. Ao invés de se abandonarem a Deus e secundá-lo em seus propósitos, O entravam por sua resistência ou ação indiscreta. Assemelham-se às criancinhas que, teimando em caminhar por si mesmas, batem o pé e choram quando suas mães procuram levá-las nos braços, e assim ou não adiantam ou vão a passos de criança.

4. Ensinaremos aqui a alma a deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, quando sua divina Majestade quiser fazê-la chegar à perfeição. Com a ajuda de sua graça, daremos aos que começam, e aos que estão em via de progresso, doutrina e avisos para entender a ação divina ou, ao menos, deixar-se guiar por ela. Existem confessores e diretores espirituais faltos de luz e experiência nestes caminhos : longe de ajudarem as almas, causam-lhes maior prejuízo. Assemelham-se aos obreiros da tôrre de Babel: em lugar de transportarem os materiais convenientes, levavam outros diferentes por causa da confusão de línguas e assim não era possível construir coisa alguma. E' doloroso para a alma não se compreender e não achar quem a compreenda nestes tempos de provação. Pode acontecer que Deus a leve por altíssimo caminho de contemplação obscura e árida, no qual lhe pareça correr o risco de perder-se. Condenada dessa forma à obscuridade, ao sofrimento, às tentações e angústias de tôda espécie, talvez encontre quem lhe fale na linguagem dos pretensos consoladores de Job : vosso estado é resultado da melancolia, da desolação ou do temperamento, ou ainda conseqüência de alguma falta secreta em punição da qual Deus vos abandonou. Desde logo êsses confessores se crêem no direito de julgar aquela alma gravemente culpada, já que sofre tais castigos.

5. Haverá também quem lhe diga : está recuando no caminho da virtude, por não mais conhecer, como antes, gostos e consôlo no serviço de Deus. Duplicam, dessa forma, o martírio da pobre alma cujo maior sofrimento é precisamente o conhecimento de sua própria miséria : vê mais claro que a luz do dia, como está cheia de pecados e faltas. Deus assim lho revela nesta noite de contemplação, como mais tarde diremos. Se acha quem concorde com o seu modo de pensar, afirmando ser seu estado o castigo de seus pecados, a aflição e as angústias da alma crescem desmedidamente e soem chegar a uma agonia pior que a morte. Nem basta a tais confessores : como, a seu ver, estas aflições constituem a punição de culpas cometidas, obrigam as almas a revolver a vida passada, não cessando de crucificá-Ias novamente, fazendo-as repetir muitas confissões gerais. Não compreendem já não ser mais tempo de agir assim, mas de deixá-las no estado de purificação em que Deus as pôs, consolando-as e animando-as a aceitar a provação enquanto Deus quiser. Porque até então, por mais que elas façam e êles digam, não há remédio.

6. Favorecendo Deus, trataremos desta questão mais adiante, indicando como a alma deve proceder e também o confessor, e por quais indícios poderá reconhecer se a alma está, verdadeiramente, na via de purificação dos sentidos
ou do espírito (a que chamamos noite escura). Explicaremos ainda como distinguir se o estado procede de melancolia ou de qualquer outra imperfeição, sensível ou espiritual. Realmente, certas almas ou seus confessores podem imaginar estar Deus levando-as pelo caminho da noite escura da purificação interior, quando, na verdade. apenas se trata de alguma das supraditas imperfeições. Sucede também que muitas almas pensam não ter oração e a têm muitíssima; e outras, julgando ter muita oração, quase nenhuma têm.

7. Faz pena ver ainda outras almas trabalharem e se fatigarem inútilmente com grande esfôrco, e em vez de progredir, retrocedem, porque pensam achar proveito naquilo que lhes é estôrvo. Outras fazem progressos rápidos com descanso e quietação. Muitas, com as mesmas mercês e regalos concedidos por Deus, embaraçam-se e atrasam-se no caminho. Enfim, as almas no trilhar o caminho da perfeição passam por diversas alternativas de alegria, de aflição, esperança e dor, nascendo umas de espírito perfeito e outras de espírito imperfeito. Tentaremos, com a graça de Deus, dizer alguma coisa sôbre tudo isto, assim cada alma poderá conhecer o caminho que segue e o que deve seguir, se pretende alcançar o cume dêste Monte.

8. Sendo esta doutrina a da noite escura pela qual a alma há de ir a Deus, não se surpreenda o leitor por lhe parecer algo obscura. Creio assim será apenas no início desta leitura ; em se adiantando, compreenderá melhor ; nestes assuntos, uma coisa explicaa a outra. E depois, se vier a reler esta obra, achará mais luz e lhe parecerá mais segura esta doutrina. Se, no entanto, algumas pessoas não se acharem satisfeitas, seria necessário culpar o meu pouco saber e a imperfeição do meu estilo, pois o assunto em si mesmo é bom, e muito útil. Parece-me, contudo, que por mais cabal e perfeitamente se escrevesse, a bem poucos seria de proveito ; porque não se trata de matéria muito moral e saborosa, nem de consolações sensíveis, como gostam muitos espirituais. Pretendo ensinar doutrina substancial e sólida para aquêles que estão determinados a passar pelo despojamento interior aqui exposto.

9. Não é aliás meu principal intento dirigir-me a todos, mas a algumas pessoas de Nossa Santa Ordem dos Primitivos do Monte Carmelo, tanto frades como monjas, que me pediram empreendesse esta obra; êstes, aos quais Deus concedeu a graça de pôr no caminho dêsse Monte, como já se acham desapegados das coisas do mundo, compreenderão melhor a doutrina da desnudez do espírito.

CAPÍTULO I - Exposição da primeira canção. Trata das diferentes noites por que passam os espirituais, segundo as duas partes do homem, inferior e superior, e declara a canção seguinte:

Canção I
Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.


1. A alma, nesta primeira canção, canta a ditosa sorte e ventura que teve em sair das coisas criadas e livrar-se dos apetites e imperfeições existentes na parte sensível do homem em virtude do desregramento da razão. A exata compreensão desta doutrina, porém, exige que se saiba não ser possível à alma alcançar o estado de perfeição sem passar ordinariamente por duas espécies principais de noites, denominadas pelos mestres da vida espiritual vias purgativas ou purificações da alma. Aqui as chamamos «noites», porque, numa e noutra, a alma caminha às escuras como de noite.

2. A primeira noite ou purificação se realiza na região sensitiva da alma: será explicada nesta canção e na primeira parte deste livro. A segunda noite, que visa as faculdades espirituais, será tratada na segunda canção e na segunda e terceira partes no que diz respeito à atividade da alma. Quanto à purificação passiva, trataremos dela na quarta parte.

3. Esta primeira noite refere-se aos principiantes, quando Deus os começa a pôr no estado de contemplação; dela também participa o espírito, como a seu tempo diremos. A segunda noite ou purificação refere-se aos já aproveitados, quando Deus os quer pôr no estado de união com Êle; e esta é mais obscura, tenebrosa e terrível purificação, conforme explicaremos mais adiante.
EXPLICAÇÃO DA CANÇÃO
4. A alma revela sumariamente, nesta canção, que saiu, levada por Deus, só por amor dele e inflamada neste amor, para procurá-lo em uma noite escura. Esta noite é a privação e a purificação de todos os seus apetites sensitivos relativamente a todas as coisas exteriores deste mundo, aos prazeres da carne como também aos gostos da vontade. Este trabalho é feito pela purificação dos sentidos; e por isso diz ter saído «quando sua casa se achava sossegada», isto é, tendo pacificada a parte sensível, e todos os apetites nela adormecidos; porque, em verdade, não pode sair das penas e angústias dos cárceres dos apetites sem estes estarem mortificados ou adormecidos. Ditosa ventura foi «sair sem ser notada», isto é, sem que qualquer apetite da carne, ou outra qualquer coisa pudesse impedi-la, por ter saído «de noite», isto é, quando Deus a privava de todos os apetites. A esta privação, a alma chamava «noite».

5. Foi verdadeiramente «ditosa ventura» para ela o ter-se deixado levar por Deus nesta noite na qual lucrou tantos bens. Seria incapaz de nela entrar com os próprios esforços, pois é bem difícil acertar alguém a desprender-se por si mesmo de todos os seus apetites, para chegar à união com Deus.

6. Em resumo, tal a explicação da canção. Daremos, agora, a cada verso o seu desenvolvimento, declarando o que vem a nosso propósito. Do mesmo modo faremos com as demais canções, como ficou dito no prólogo, isto é, primeiro cada canção e depois cada verso.